terça-feira, 30 de outubro de 2012

"AFORISMOS, DESAFOROS E SUAVES INJÚRIAS" POR RICARDO LABUTO GONDIM


Ricardo Labuto Gondim
Foto: Divulgação
Sábado tive uma noite daquelas. Voltei pra casa dizendo que “foi tudo um grande erro” e acordei repetindo o mantra mais popular do hemisfério: “Nunca mais beberei”.

Tudo começou com uma virtuosa água tônica, corrompida noventa minutos mais tarde por uma bebida de cor azulada. Uma exótica aventura etílica que alguém aprendeu a fazer em um vilarejo úmido trinta milhas ao norte de Trichinópoli. Pelo que me lembro, a mistura envolvia tudo que o barman tinha na prateleira e alguns derivados do petróleo. Suponho ter ouvido um gato miando desesperadamente e um liquidificador, mas não tenho certeza. Sei que durante os ‘trabalhos’ houve um princípio de incêndio logo controlado. Como algum infeliz salvou a coqueteleira, estou aqui ‘fechando a conta’; pondo o cargo à disposição do Criador.

Mesmo com neurônios irremediavelmente perdidos e algumas sinapses em estado de latência, as seduções da fama e de uma riqueza indecente me levam a escrever. Não tenho escolha: dividirei o mau-humor com você. Minha assistente, Miss Eleanor Ariadne Pibble digitará o texto, pois estou vendo todas as teclas ddoobbrraaddaass. Se algo sair errado a culpa é dela.

A crítica inglesa é a mais influente do mundo: disseram que Colin Davis e Simon Rattle eram grandes regentes e até os alemães acreditaram.

Às vezes me vejo pensando que não podemos perdoar aos ingleses a invenção de Andrew Lloyd Webber (o túmulo da música no Ocidente), Colin Davis e Simon Rattle. Então me lembro, eles também inventaram Shakespeare e Lord Byron.

Borges escreveu que organizar a estante de livros é também um modesto exercício de crítica. Aplicando o mesmo princípio à minha discoteca, julguei prudente omitir qualquer vestígio de Rattle. Vai que você me visita?

Não pude omitir Davis por sua parceria com a orquestra mais equilibrada do mundo, a Concertgebown de Amsterdã.

Se o DVD de Leopold Stokovsky pela EMI tem como irreparável defeito o próprio Stokovsky, tem também Pierre Monteux como bônus, o que justifica abrir o cofre. Monteux rege O Aprendiz de Feiticeiro com a meticulosidade e precisão de quem estreou a Sagração da Primavera. Menina, menino, você precisa ver isso. Rattle, eu lhe asseguro, jamais viu.

O repórter para Toscanini: “Que imagem o senhor tem diante de si quando rege a Heróica?”
Toscanini, ignorando as possibilidades retóricas e marqueteiras da pergunta: “Allegro con brio”.

O repórter para Otto Klemperer: “Por que o senhor só rege com partitura?” “Porque eu sei ler música”.

O crítico Omar Castellan definiu a Filarmônica de Viena em uma frase memorável: “a mais sensual das orquestras”. O jeito inesperado como ela reage ao toque de cada regente não deixa dúvidas: é a fêmea da espécie.

Uma garota bonita pediu a Brahms que autografasse sua sombrinha. Ele escreveu dois ou três compassos do Danúbio Azul e acrescentou: “Infelizmente não é minha”.

Uma garota não tão bonita perguntou a Schubert: “Por que você só compõe música triste?” O pobre Franz respondeu: “E por acaso existe outra?”.

Um crítico elegante poderia dizer que, apesar da técnica irrepreensível e do som extraordinariamente cristalino que extrai do piano, Alfred Brendel é um músico desprovido de imaginação. Eu, que sou desprovido de elegância, acho Brendel um chato.

A crítica mais fulminante que já li foi disparada pelo insuperável Mário Henrique Simonsen, que chamou Ivo Pogorelich de “o pianista mais bonito do mundo”. Mesmo entrando em anos, a fama do músico permanece: o público ainda confunde velocidade com virtuosismo.

Não fique chateado se você gosta de Davis, Rattle, Stokovsky (que Simonsen chamava de “maestro de Hollywood”) e Brendel. Digo isso porque amo Schnabel, Solomon, Curzon, Anda, Skoda, Mengelberg, Weingartner, Mitropoulos, Toscanini, Monteux e muitos outros intérpretes que a maioria das pessoas não conhece porque só existem em gravações comprometidas pelo tempo.

Em estúdio, os melhores engenheiros de gravação conseguem fazer com que um Steinway construído para uma sala de concerto de dois mil lugares se pareça com um piano. Pelo sim, pelo não, Gulda não arriscou, e gravou as sonatas de Beethoven com o Börsendorfer. Tenho a versão em LP guardada por dois mastins, três gansos, quatro klingons e um hamster selvagem.

Quem assistiu à série The Music of man de Yehudi Menuhin (no Brasil, A Magia da Música), deve lembrar-se da ira do célebre violinista profissional e maestro amador contra Glenn Gould. O episódio mostra Gould ‘regendo’ o engenheiro durante a seção de mixagem dos cinco ou seis microfones que usou para gravar o piano. O que Menuhin chamou de ‘falsificação’ eu chamo de ‘integridade’. Gould entendeu que uma gravação é uma gravação. Em sua busca obsessiva pela clareza, abdicou de tudo. Até mesmo do realismo. Às vezes, da beleza de som.

Volta e meia alguém escreve sobre a ‘discussão pública’ entre Glenn Gould e Bernstein antes da execução do Concerto n. 1 de Brahms em 6 de abril de 1962. Revogando meio século de mexericos, informo que não houve discussão. Bernstein surgiu sozinho no palco, expôs o assombro perante a dilatada interpretação do pianista e lhe fez um elogio retórico – ainda assim, deselegante. Gould entrou na sala sem dizer nada, sentou ao piano e tocou em câmera lenta. Há quem não tolere ouvir, há quem reconheça uma beleza inquietante, mas não há quem permaneça indiferente. Esse foi o primeiro toque do gênio. O segundo é que poucas vezes no mundo da música um artista aceitou a oposição do outro com a nobreza fidalga de Glenn Gould – que testificou a eloquência ensurdecedora do silêncio. 

Não importa se você aprova ou rejeita a leitura que Gould fez de Brahms. O que importa é o risco. É necessário. Como desafiou Billy Wilder: “Mostre-me um homem que nunca teve um fracasso e eu lhe mostrarei um medíocre; ele não arrisca, só trabalha em segurança.”

Bernstein – que foi um grande músico – aprendeu alguma coisa naquela noite. Vinte e cinco anos mais tarde ousou gravar com a Filarmônica de Nova Iorque a mais lenta versão da VI Sinfonia de Tchaikovsky: 58:48”. Nem mesmo Sergiu Celibidache superou a proeza: sua versão de 1997 com Munique é um minuto e nove segundos mais curta.

Ouvi a última gravação da I Sinfonia de Brahms com Celibidache, que é um concerto para tuberculose e orquestra. Concluí que no dia em que os engenheiros gravarem as orquestras com a mesma qualidade com que gravam as tosses, a audiofilia estará concluída.

Há muitos anos li no jornal a entrevista de um engenheiro de gravação aposentado, que havia trabalhado com os gigantes da regência. Ele confessou que nunca entendeu o que os maestros – especialmente Karajan – queriam dizer quando lhe pediam um som ‘tridimensional’: “Só conheço dois tipos de som: o alto e o baixo. O resto eu nunca escutei”. Pessoalmente, acho que acústica e engenharia de gravação são ciências tão refinadas e complexas, que sobre muitos dos êxitos que conhecemos pairam as obras do Acaso e da Providência.

No Requiem de Verdi regido por Toscanini, no Tuba Mirum você pode ouvir o maestro gritando “Piu forte! Piu forte!”. Durante a transmissão ao vivo, o coro atendeu o comando do maestro de modo tão eficaz que derrubou as máquinas e os engenheiros. Foi preciso usar o registro do ensaio – que um técnico muito ajuizado teve a prudência de gravar.

Toscanini pediu a um soprano famoso pelo dó de peito – e pelos próprios peitos – para cantar uma dada frase assim, assim. Lá pela quarta tentativa a mulher ensaiou um protesto. O maestro desceu do pódio e apertou vigorosamente os ‘atributos’ da dama: “Ah, madame, se isso fosse cérebro!”.

Ainda Toscanini: uma diva agiu como diva durante todo o ensaio. Ao contrário do que se esperava, Toscanini não explodiu – foi até suave: “Senhora, queria lhe dizer que as estrelas estão no céu. Aqui em baixo só existem bons e maus músicos. A senhora pertence ao grupo dos maus”.

Puccini e Toscanini brigaram. No Natal, o compositor tinha por tradição enviar panetones aos amigos. Esquecendo-se da cizânia, a secretária postou o acepipe para Toscanini. Puccini mandou um telegrama: “Panetone enviado por engano”. Toscanini respondeu: “Panetone comido por engano”.

Anos mais tarde o maestro regeu a estréia de Turandot. No ponto em que o manuscrito autógrafo passava da caligrafia de Puccini à de Alfano – que completou a obra –, Toscanini calou a orquestra e voltou-se para o público do Scala de Milão: “Aqui o maestro morreu”. O público se levantou, saiu em respeitoso silêncio e voltou no dia seguinte para ouvir a conclusão da ópera.

Toscanini definia a si mesmo como um “contandino”, um camponês. Definitivamente ele não era um intelectual como Furtwängler, que vivia cercado de literatos e filósofos, ou uma personagem do jet set como Karajan. Mas foi um homem extraordinário: pra você ter uma idéia, quando a Guerra acabou Toscanini enviou cerca de dez mil pares de sapatos à Itália porque seu povo estava descalço. Pagou do próprio bolso. E implorou – inutilmente – pelo anonimato. Sempre repito isso à multidão dos ‘espíritos penetrantes’, que se julgam ‘superiores’ porque ouvem a música que toca o coração teimando em chamá-la de “erudita” – coisa que, aliás, não existe.

Além da esfera das quiálteras, Bach, Mozart, Haydn e Beethoven eram homens muito pouco instruídos. Os erros ortográficos nos cadernos de conversação de Beethoven ainda desafiam os gramáticos.

Conheço ouvintes que lêem as partituras do Wozzeck e da Elektra com uma desenvoltura que eu só alcanço nos quadrinhos do Mickey. Nenhum deles reconhece essa tal de “música erudita”. Apurei que gostam apenas de “música”.

O Danúbio Azul, que infelizmente não é de Brahms, é “música erudita”?

Se a música é “erudita”, que credencias devo exibir além da vaidade para me qualificar como ouvinte?

Voltemos aos clássicos. Voltemos à música.

Karajan foi gravar o Don Quixote de Strauss com Rostropovich. Quando o violoncelo entrou, um som terrível. “Slava”, perguntou o maestro, “sente-se bem?” Rostropovich sorriu: “Sim, mas veja, é um cavalo muito velho o que estou montando”.

Depois de gravar o ciclo de Beethoven na década de 1970, Karajan foi descansar nos Alpes. Ouviu as prensagens de teste do material mixado e telefonou para a DG: “Sinto muito, senhores, mas teremos de refazer tudo desde o princípio”. Os engenheiros e a direção da gravadora entraram em pânico, aquilo ia custar uma fortuna. Quando o maestro voltou de férias, levaram-no ao estúdio e imploraram para que ouvisse outra vez – e ele achou perfeito.

Karajan decifrou o mistério: a altitude dos Alpes havia alterado sua pulsação. Segundo ele, os tempos da música têm relação direta com o ritmo cardíaco do intérprete. A Fundação Karajan pôs-se a estudar cientificamente o fenômeno sob o escárnio da imprensa alemã, que chamou a pesquisa de “diletantismo”. Muito inadvertidamente os resultados explicaram porque três maestros morreram regendo Tristão e Isolda, dois deles praticamente no mesmo trecho do Terceiro Ato.

Muitos anos antes Toscanini intuitivamente havia compreendido a questão, acelerando seus tempi na medida em que envelhecia. Por isso, ao contrário dos demais regentes, suas gravações finais podem ser consideravelmente mais rápidas que versões anteriores. E também por isso é preciso avaliar com cuidado as teses de Celibidache – que criou um mito sobre o ‘tempo na música’.

Jovem, Celibidache era um moreno bonito sustentado no pódio pela hipertrofia do eu. Francamente, tinha mais aparência do que valor. Mas o talento estava lá. Por volta dos quarenta anos revelou-se um regente muito maior do que prometia a “frívola juventude” – uma espécie de Henrique V da música. Em idade avançada, sua perspectiva do tempo mudou – mais por efeito da velhice do que pela virtude de uma filosofia zen-budista da regência. Seus tempi arrastados – que exaltam Bruckner, são aceitáveis em Brahms, mas destroem Beethoven – tendem ao paroxismo. Uma linha de transição numa partitura qualquer soa enorme, grandiosa, monolítica...

Menina, menino, aqui há sabedoria. Algo que me escapa, que não posso compreender, mas intuir. O que hoje entendo como um equívoco pode significar outra percepção. Uma transcendência.

A música é a máxima expressão do Humano. E o intérprete, a voz de Deus, da Civilização e dessa mesma Humanidade. Mas na medida em que ele mesmo caminha para o Infinito, tende ao monumental e ao estático. Creio que isso ocorre porque em nós existe a centelha do Sagrado... que no ocaso da vida sente a nostalgia da Eternidade.

Não tema a ressaca. Viva o sábado em cada dia.


Por Ricardo Labuto Gondim 
Teólogo, professor, roteirista, ensaísta, crítico de cinema e música. Nasceu no Rio de Janeiro em 1966. É autor de “Deus no Labirinto” (Editora Baluarte), volume de nove contos e dois ensaios com prefácio de Washington Olivetto (Fan Page em http://www.facebook.com/DeusNoLabirinto).

Nenhum comentário:

Postar um comentário