quarta-feira, 17 de outubro de 2012

TRIBUTO AO SOM RUIM por Ricardo Labuto Gondim


Ricardo Labuto Gondim
Foto: Internet
Se eu fosse um puro-audiófilo – alguém que vive para ouvir gravações que revelam as belezas do sistema de áudio, não as belezas da música – estaria feliz com a passagem dos anos, que acena com prodigiosas promessas. Creio que a tecnologia digital produzirá sistemas espetaculares, de grande musicalidade e baixo custo. Mesmo que as virtudes de tais produtos residam na emulação dos melhores sistemas de hoje – e também de amanhã.

Felizmente ou infelizmente, quem sabe?, não troco uma interpretação espetacular de som ruim por um registro ruim de som espetacular. Não mesmo. Tenho dezenas de versões da Heróica, mas nenhuma que supere Toscanini com NBC, 1939. Ainda que a arqueologia melômana tenha tecnologia para exumar a gravação, remover o Egito impregnado ao registro e ressuscitar o maestro, por toda a eternidade estaremos ouvindo uma captação do final dos anos de 1930.

Assim, gostaria de fazer uma lista de extraordinárias interpretações de obras célebres... com som “datado” ou meramente ruim. Em arte é preciso ser radical: se a idéia é épate le bourgeois vamos épate todo mundo.

Começando pelo arauto de Deus, Johann Sebastian Bach, gostaria  de recordar as gravações históricas do organista Albert Schweitzer, doutor em teologia, filosofia e medicina, pastor luterano, especialista na construção de órgãos, Prêmio Nobel da Paz de 1952, biógrafo e maior intérprete de Bach em seu tempo. O Dr. Schweitzer celebra a monumentalidade da Tocata e Fuga em ré menor pela seleção dos registros do órgão, não pelo uso anacrônico do grande instrumento romântico – que pertence à Widor e César Franck, não à Bach. Com uma vida que exalta o gênero humano, Schweitzer nos reconcilia com o espírito fundamental da obra em detrimento de um espetáculo em Cinemascope. Algo muito mais íntimo, profundo e único – sem deixar de ser grandioso, mesmo com som da década de 1930.

Se você nunca ouviu Toscanini, nunca ouviu as sinfonias de Beethoven. A afirmativa pode ser radical mas é verdadeira. Extraindo da orquestra um som estupendo e uma clareza extraordinária, Toscanini é a fonte das gravações mais impactantes que você conhece. Carlos Kleiber e Karajan praticamente se afogaram de tanto beber do ciclo de 1939, mais furioso e veloz que o de 1949/52. Os empolgantes IV movimento da V Sinfonia com os dois grandes regentes devem tudo a Toscanini, referência absoluta. Se você está começando a ouvir os clássicos, saiba que Toscanini é autor da frase mais copiada e mais importante da história da regência: “escutem uns aos outros”, dizia ele aos membros da orquestra.

Como nossas elites não estão a altura do país, a nova geração de melômanos não conhece a brasileira Guiomar Novaes. Madame Novaes dizia que Beethoven escreveu o Concerto n. 4 para ela. Talvez você concorde ouvindo o registro com Klemperer e Sinfônica de Viena, com quem a intérprete gravou ainda o Chopin n. 2... e um concerto de Schumann onde piano e clarineta fazem amor em pleno palco. Embora não seja bom, o som Vox da década de 1950 não chega a ser ruim. Se você condescender em experimentar, vai querer ouvir tudo que a grande dama gravou. Como Arthur Rubinstein, Guiomar Novaes era senhora de tudo que tocava. 

As tensões da Sinfonia n°. 1 de Brahms nunca foram tão sublimadas quanto na gravação de uma transmissão ao vivo de 1969, com Karl Böhm exigindo fogo e tempestade da Orquestra Sinfônica da Rádio Bávara. Aqui tudo emerge para a brutalidade, mesmo os detalhes sutis. A violência que Böhm descobre na obra é desconcertante, e obviamente tem relação com a própria gênese da Sinfonia. Um doloroso parto a fórceps que atormentou Brahms ao longo de 20 anos de composição. Esse arrebatamento visceral contribuiu para derrubar os engenheiros da gravação lançada em CD pela ORFEO. Além de produzir um registro sem brilho, os rapazes não puderam deter distorções aqui e ali.

Outra gravação impetuosa e surpreendente de Brahms é a IV Sinfonia em versão mono de 1954 com Eugen Jochum e Filarmônica de Berlim. Pessoalmente acho que Jochum é um dos regentes mais injustiçados e subestimados pela crítica. A prova é o silencioso acolhimento dessa gravação preciosa, que se alterna continuamente – compasso após compasso – entre a paixão, a melancolia e o arrebatamento, consumados no tour de force incendiário do IV movimento. Lindo do princípio ao fim. O álbum da coleção The Originals é duplo, e traz versões muito bonitas das demais sinfonias – mas que não chegam a alcançar o mesmo fulgor.

Você já deve ter ouvido falar em maestros que pareciam estar “compondo ao invés de reger”. Florestas inteiras foram cortadas para imprimir tal frase, atribuída sem muito critério a uma multidão de cavalheiros de fraque. Somente experimentei essa impressão com um nome pouco conhecido, Nikolay Golovanov. Superado o impacto do som miserável, inexplicavelmente ruim para os anos de 1950, ouvir a Sinfonia Patética, a Abertura 1812 ou a Sinfonia n. 2 de Rachmaninov com Golovanov pode vir a ser uma das experiências musicais mais renovadoras que você já teve. A Patética e a Sinfonia n. 2 são uma alta exibição de rubatos alarmantes e bruscos, dinâmica abissal e a ostentação do vigor atlético, marcial e stalinista dos naipes de uma orquestra russa. A 1812 não dá bola para a artilharia pesada dos canhões, mas para a infantaria: a estrela dessa versão única é a “caixa clara”, elevada à condição de solista.

O Pássaro de Fogo me assombra desde garoto e seus efeitos não parecem abrandar com uma maturidade avançada. Tenho dezenas de versões do balé completo e das diferentes suítes de Stravinsky, todas multicoloridas e nem sempre distintas entre si. Uma, entretanto, ocupa um lugar especial entre meus sonhos e pesadelos: a suíte gravada por Ernest Ansermet com a Filarmônica de Londres em 1946. Ansermet conduz a orquestra e o ouvinte em direção a uma experiência verdadeiramente pictórica: sombria, saturada de pinceladas ríspidas, precipitadas e escuras – mas ao mesmo tempo luminosa em sua exposição de detalhes. Entusiastas afirmam que para 1946 o som é “estupendo”. Não creia, já ouvi coisa mais antiga e melhor.

Nessa compilação limitada pela falta de espaço e pelo meu gosto restrito, omissões injustas são inevitáveis. Mas teria sido trágico esquecer de recomendar Václav Talich regendo as Danças Eslavas de Dvorak com sua apaixonada orquestra, a Filarmônica Tcheca. Talich foi um dos gigantes da regência e deixou um legado de interpretações fantásticas. Os espíritos penetrantes – que costumam desdenhar obras menos ambiciosas e de profundo caráter melódico como as Danças Eslavas – deveriam ouvir esta interpretação arrebatadora, emocionante, plena de vitalidade e humanidade. Uma celebração da própria vida. Esse documento imperecível tem som de 1950 registrado pela Supraphon, que disputava com a soviética Melodyia o título de quem gravava pior – às vezes, com insuperável vantagem.

Nenhum regente jamais esgotou uma sinfonia de Mahler, embora Tennstedt tenha se aproximado estupendamente de tal proeza com sua incrível leitura da VI. Contudo, para produzir o milagre, além de contar com uma notável tomada de som o maestro optou por andamentos quase estáticos nos trechos de estrutura harmônica mais complexa. Recusando este artifício válido, Jascha Horenstein – a frente da Nova Philharmonia – produziu uma das versões mais hipnóticas da VII Sinfonia, a sinfonia da noite. Digo isso a despeito da trágica perda de afinação da primeira nota do solo inicial. Escrito para tuba de Bayreuth, na falta desse instrumento peculiar o solo costuma ser tocado por bombardino (um instrumento maravilhoso desprezado pelas multidões) ou pela trompa. Como você mesmo poderá constatar, a trompa é um instrumento miserável para se manter afinado. Os andamentos de Horenstein são precisos e fluentes, brotando com naturalidade da própria pulsão interior da música – sem fazer concessões à extraordinária clareza de detalhes. Aquela longa frase de caráter assumidamente oriental no final do primeiro andamento, por exemplo, nunca foi tão bem articulada – e jamais soou tão linda, sem rubatos ou efeitos especiais. Infelizmente, para uma transmissão ao vivo de 1969 o som é vergonhosamente opaco, mesmo na edição da BBC Legends.

Por razões que somente ele conhece – e que a mim pouco interessam –, Norman Lebrecht classificou a frase inicial da IV de Mahler por Mengelberg e Concertgebouw como “atabalhoada”. Como Lebrecht é muito citado pela congregação dos incautos e blefadores, convém repetir que – pra variar – ele não sabe o que está falando. Primeiro, Mahler e Willem Mengelberg eram amigos pessoais. Segundo, Mengelberg foi o primeiro regente da Concertgebouw de Amsterdã. Terceiro, ele se manteve à frente da orquestra por 50 anos, estabelecendo o padrão de excelência e a tradição que perdura até hoje. Quarto – e muita atenção aqui, por favor – a respeito do andamento das flautas na introdução da IV, o próprio Mahler escreveu que “elas parecem não saber contar até quatro”. Ora, se o Gondim sabe disso Mengelberg também sabia. E materializou aquilo que o crítico Marc Vignal, autor de um rigoroso e lamentavelmente curto livro sobre o compositor, define como “uma espécie de falso início em si menor”. Ainda que dado a maneirismos peculiares e alguns exageros próprios de seu tempo, o genial Mengelberg e sua orquestra nos conduzem pela mão e com muita leveza através de “visões do paraíso pelos olhos de uma criança” – a intenção subjetiva de Mahler. Este é um dos grandes momentos da história do disco.

Ainda há muito território a percorrer,  mas devo me deter aqui. Por falar em Mengelberg, o maestro tinha apenas 27 anos quando recebeu a dedicatória de “Uma Vida de Herói”, composta por Richard Strauss em 1898. Por méritos como vigor, pulso e clareza, sua gravação de 1941 com Concertgebouw é considerada a referência absoluta da obra. Pessoalmente, creio que a versão de Monteux com Sinfônica de São Francisco (que consta do catálogo da Pierre Monteux Edition, mas não da discografia oficial da orquestra) tem as mesmas qualidades. Mas se tivesse que escolher apenas uma para levar àquela ilha deserta cercada de enquetes por todos os lados, escolheria Monteux. O motivo? Não sei dizer. Ambas formam a imagem ampla e profunda da obra. Mas por razões que não posso precisar ou definir – puramente pessoais, sem nenhum critério objetivo para justificá-las – prefiro Monteux. Tais juízos difusos são os mesmos que me fazem escolher certas gravações datadas ou meramente ruins em detrimento de outras, em Cinemascope. Se eu quisesse ser racional em minha escolha deveria eleger Mengelberg, que ganhou a dedicatória e gravou a música com a Concertgebouw pela lendária Telefunken. O registro foi restaurado e lançado em CD pela TELDEC imaculadamente purificado de fungos, poeira e estalidos. Já a gravação de Monteux não teve a mesma sorte, tem distorções e ruídos.

Quem se importa?

Por Ricardo Labuto Gondim
Teólogo, professor, roteirista, ensaísta, crítico de cinema e música. Nasceu no Rio de Janeiro em 1966. É autor de “Deus no Labirinto” (Editora Baluarte), volume de nove contos e dois ensaios com prefácio de Washington Olivetto (Fan Page em http://www.facebook.com/DeusNoLabirinto).



Um comentário:

  1. Ótimo texto, porém o Mestre Labuto neste caso se excedeu.
    Ele utilizou um assunto completamente batido (audio x tecnologia x qualidade) para exibir seu profundo conhecimento em música...

    Em números ele escreve 3 parágrafos introdutórios sobre áudio, incrivelmente 10 parágrafos sobre história da música (inclusive detalhes sobre os regentes, vida pessoal e etc) com meras inserções sobre meia duzia de gravações ruins, depois MEIO PARAGRAFO sobre áudio novamente, e na verdade nem é sobre áudio, mas sobre as escolhas do maestro...

    Isso na internet tem nome "TagJacking", ele usa um assunto como subterfúgio para discorrer sobre outros.

    Ele não cita, em momento algum, um exemplo de gravação boa e má interpretação.
    Ele discorre sim sobre os tempos, os efeitos que são perceptíveis, mas também da bebedeira dos personagens.

    Esse é um exemplo horrível do elitismo cultural onipresente no mundo da música clássica. O cara usar um assunto batido em TODOS os ramos da música para discorrer um conhecimento acima da média. Inclusive sobre a vida pessoal dos protagonistas...

    Mestre Ricardo Labuto, você sabe muito e todo mundo sabe disso. Não precisava sequestrar um tópico para mostrar isso para todo mundo.

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