sábado, 16 de fevereiro de 2013

GRAVES & AGUDOS por Ricardo Labuto Gondim (Viva a ecologia: nova versão de um artigo reciclado algumas vezes)


Ricardo Labuto Gondim
Foto: Divulgação
Uma namorada de muitos atributos tenta me impressionar. Sem necessidade, juro.
— Ai, Vida, que música linda. Como se chama?
— Não tem nome.
— E quem compôs?
— O acaso.
— Como assim?
— A música ainda não começou, meu anjo. A orquestra está afinando.
— Ah, tá. Sabe o que é? Eu não entendo muito de música clássica.
— Sério? Até agora você tinha conseguido me enganar.
— Mas orquestra afinando é bonito, né?
— Lindo. Estou todo arrepiado, olha...


A mesma namorada passeando pela Internet numa manhã de domingo.
— Vida, o crítico que escreveu aquele livro sobre maestros que você detesta foi esquiar.
— Então que os Céus o protejam.
— Por quê?
— Se quebrar uma perna, terá que ser sacrificado.


O maestro medíocre extrai uma performance estupenda da orquestra. Um amigo me cobra:
— Você não vive dizendo que esse cara é um marcador de compasso?
— Digo e repito. Você tem que ouvir é quando ele sabe o que está fazendo.


Uma amiga “culturete” [caçadora de eventos culturais que se resigna a ver e ouvir qualquer coisa só pra não ficar em casa] me leva a um recital injustificável. Pareço impaciente, ela se irrita:
— Você tem algum compromisso depois?
— Não.
— Então pára de olhar as horas.
— Desculpe, mas é compulsivo. Quando o músico olha muito para o metrônomo, eu olho para o meu relógio.


Um amigo:
— Prefiro Beethoven com Abbado.
O outro:
— Prefiro Beethoven com Rattle.
Eu:
— Prefiro Beethoven sem esse tipo de ajuda.


Pegadinha.
— Faz de conta que você está num avião com Abbado, Rattle e Angela Merkel. O que você diria?
— Abbado é um grande intérprete de música moderna e contemporânea. Acho Rattle um mau regente, mas não me permito duvidar de suas qualidades pessoais. Eles parecem homens corteses, acessíveis, e deve ser incrível conversar com eles.
— E Merkel?
— Não estamos num avião? Eu diria: “Angela, querida, seja uma boa menina e vai brincar lá fora”.


No teatro, o concerto vai mal. Um amigo reage:
— O que você acha desse cara regendo?
— Ele está?


Momentos depois quem estranha sou eu:
— Mas afinal, quem é o regente?
— O cara de pé com fantasia de pingüim e uma varinha na mão.
— E a orquestra foi avisada?


Fim do concerto. Não tenho ânimo para aplaudir. Meu amigo cruza os braços ostensivamente. Uma velhinha:
— Por que o senhor não aplaude?
— Porque eu acho que entendo um pouquinho de música.
— E o seu amigo?
— Entende muito mais do que eu.  


Há anos tive o prazer de almoçar com o maestro Yeruham Scharovsky, então titular da OSB na companhia de uma jornalista e membros da Orquestra. Conversando sobre as sinfonias de Brahms, mencionei que Charles Mackerras havia estudado os manuscritos originais e identificado – era o que eu lembrava na época e expliquei que não tinha certeza – uns 80 erros na edição mais difundida das partituras. Perguntei o que o maestro achava. Ele minimizou a questão com um gesto, sorriu e fulminou:
— São 80 erros lindos.


Depois dessa é claro que comprei o álbum de Mackerras gravado pela Telarc, com partituras coligidas e a excelente Orquestra de Câmara Escocesa. Sir Charles tentou reproduzir a prática do período das sinfonias, trabalhando com vibratos isolados, tempos bem marcados, etc. E incluiu a alternativa da primeira versão do andante da Sinfonia n. 1, revisado por Brahms depois da estréia e muito, muito mais ousado que a versão definitiva. A gravação da Telarc é surpreendentemente seca, não tem aquela “dimensão” habitual que faz com que um quarteto de cordas soe como a Filarmônica de Viena. No conjunto, uma grande realização. Mas nada é decisivo. Sejam lá quantas forem as correções de Mackerras, elas se diluem entre as milhares de notas e andamentos das quatro partituras. Mais tarde, ouvindo a Terceira com Bernstein e Horenstein entendi o que Scharovsky quis dizer: são mesmo 80 erros lindos. 


— O que é “dodecafonismo”.
— O desespero de encontrar uma linguagem capaz de expressar um mundo privado de inocência e ilusões após a I Guerra Mundial. Um dos pontos altos da música no Século XX.
— Mas em termos práticos?
— Um algoritmo.


O regente autocrata dá uma bronca na orquestra:
— O que vocês pensam que estão fazendo? Não é assim que se toca Brahms!
— Mas maestro... Isso é Schumann.
— Não é mais!


Uma amiga muito querida:
— Não acredito que você não gosta de Händel.
— Também não gosto de ir ao dentista, jiló e óleo de fígado de bacalhau.
— Mas você não enxerga nenhum mérito nele?
— Claro. O mérito histórico. Händel inventou a música de elevador.


— Você gosta do “Messias”.
— Sim.
— Mas não gosta de Händel.
— Não.
— Isso é contradição.
— Isso é liberdade.  


Ouvindo a Sinfonia Alpina com Mravinsky. Um amigo se volta pra mim:
— Cara, você não vê os Alpes, não vê os abismos e essa coisa toda?
— Não.
— Que falta de imaginação! Você devia relaxar mais quando ouve música.
— Gostaria, mas não consigo: tenho medo dessa neve toda nos alto-falantes.


O bar. Lógico.
— Você não concorda que o Brasil tem ótimos regentes?
— Uau, só tem. Ligia Amadio, Roberto Tibiriçá, Silvio Viegas... A lista é longa, muito longa. Quem não conhece é a alta direção da OSESP, que atravessa fronteiras para favorecer mediocridades.


O aniversário de uma amiga em um restaurante com música ao vivo. Não sei que diabos estão tocando.
— Querida, isso é música moderna?
— Não, meu lindo. O garçom derrubou a bandeja.


— Que som estranho é esse?
— É um trombone em dó tocando em um registro muito grave.
— E o maestro deixou passar?
— Se ele conhece o ofício, precisa mostrar.
— Mas é feio.
— Não é pra ser bonito. É música.





Por Ricardo Labuto Gondim 
Teólogo, professor, roteirista, ensaísta, crítico de cinema e música clássica. Nasceu no Rio de Janeiro em 1966. 
É autor de “Deus no Labirinto” (Editora Baluarte), volume de nove contos e dois ensaios com prefácio de Washington Olivetto (Fan Page em http://www.facebook.com/DeusNoLabirinto).




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