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Rubem Braga Cronista que teria feito cem anos em 12/01/13 Foto: Internet |
Se estivesse vivo, Rubem
Braga (1913-90) teria completado cem anos no dia 12 de janeiro deste ano.
Em comemoração, o selo José Olympio, do grupo Editorial Record, preparou
o lançamento do livro Retratos parisienses, que já se encontra nas livrarias. Organizado por Augusto Massi, professor de literatura na
Universidade de São Paulo (USP), o livro traz uma compilação de textos escritos
pelo cronista durante sua estada em Paris, em 1950.
A Revista CULT teve acesso a um
dos textos, inédito em livro. Leia abaixo “Visita a Jean-Paul Sartre”, perfil
que o cronista escreveu sobre o filósofo francês.
Visita a
Jean-Paul Sartre
por RUBEM BRAGA
Os estudantes do velho
Centro Acadêmico Cândido de Oliveira, do Rio, querem levar uma peça de Sartre, Morts
sans sépulture, sem pagar os direitos. O pedido vem às mãos de Roberto
Assumpção, secretário da embaixada, que lida com as coisas culturais. Ele
escreve a Sartre e recebe logo a resposta, marcando rendez-vous:
meio-dia e meia, no apartamento do escritor. Vou também, como penetra.
Paulo Silveira me contou
que o velho Anatole France dizia isso: “Se Deus acabasse com o mundo, mas
deixasse a rua Bonaparte, ele ainda se conformava.” É na verdade muito sábia e
gentil essa pequena rua que nasce na beira do Sena e vem atravessar o boulevard
junto à igreja de Saint-German-des-Prés, para morrer logo depois de
Saint-Sulpice, junto às árvores do Luxemburgo. Ainda hoje é bem doce bobear
pela sua calçada estreita, entre pequenas livrarias e casas de antiguidade; e o
miúdo comércio vulgar que ali se entremeia apenas lhe dá mais graça e vida: não
é raro ver a moça, que desceu de sua mansarda para comprar um longo pão, se
deter, sonhadora, diante de uma gravura ou de um bibelô antigo.
Sartre mora na esquina da
rue de l’Abbaye, num quarto andar aonde se ascende por uma escada meio escura,
em caracol. Esse solteirão de 45 anos vive com sua mãe, e tem um apartamento
bem-arranjado. Eu melhoraria de estilo se escrevesse, como ele, nesse pequeno
escritório cheio de livros, com duas janelas dando para o largo: à esquerda, a
torre da igreja, à direita, o Deux Magots. Quem entra na rua aqui encontra, na
segunda casa depois da sua, o hotel em que Auguste Comte concebeu seus três
Estados; um pouco mais adiante, a casa onde nasceu Manet.
À primeira vista, o dono
da casa lembra Portinari; um Portinari que fosse mais forte e mais rústico.
Esse parisiense que deriva da Borgonha e da Alsácia tem alguma coisa do
camponês do Norte. É vermelho, tem a pele grosseira e os cabelos cor de palha
suja. Os pedaços de costeleta que passam sob os ganchos dos óculos já
embranqueceram. É impossível saber se está falando com Roberto Assumpção ou
comigo, pois cada olho verde fixa um de nós, formando um ângulo de 45 graus;
mas parece que o esquerdo, que fixa o diplomata, é que está com a razão.
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Jean-Paul Sartre Foto: Internet |
É um homem baixo, retaco,
e certamente feio. Mas quando começa a mover-se e a falar a gente compreende o
seu poder de atração. Está vestido com um grosso terno de casimira
cinza-escura, com colete e jaquetão, que certamente lhe permite sair sem mais
agasalhos; reparo em sua gravata vermelha e em seu bom e sólido sapato de couro
de porco. Simpatizo com a sua larga mesa de trabalho. É um grande e desordenado
fumante; ali estão três ou quatro maços de cigarros franceses, de duas marcas
diferentes, mas ambos fortes, e ainda dois pacotes de caporal para cachimbo, e
também essa grande caixa de fósforos, de mil palitos, usada pelas
cozinheiras, e muito mais eficiente que qualquer isqueiro.
Estava escrevendo quando
nos recebeu; explica-me que está acabando seu estudo sobre Jean Genet. Tem em sua
frente uma edição de luxo de Notre-Dame-des-Fleurs. Automaticamente
reparo nos dois livros que tem sobre a mesa: um é de Platão, outro de Mallarmé.
É claro que tem prazer em
que os estudantes levem sua peça; faz questão de escrever a eles uma carta, dando
licença e agradecendo. Roberto lhe fala sobre o interesse que sua obra desperta
no Brasil. Já tem notícia disso, e teve um convite de São Paulo para visitar
nosso país. “Este ano foi impossível, mas vou dar um jeito de ir no ano que
vem.” Conta que o adido cultural francês em São Paulo lhe prometeu mandar a
tradução do ensaio de um escritor brasileiro para publicar na Les Temps
Modernes, a sua revista. Não se lembra do nome do escritor.
Faz perguntas sobre nosso
país. Diz que tem boa impressão dele pelo que lhe contaram Camus, Barrault e
outros amigos. Um povo que tem caráter próprio, e muita efervescência
intelectual. Não tem o ar de dizer gentilezas e parece exprimir uma curiosidade
sincera. Digo-lhe que, na linguagem do Rio, “existencialismo” tem um sentido
não muito austero e lembra mais Chiquita Bacana do que Søren Kierkegaard.
Ri:
não é apenas no Brasil, é no mundo; isso começou aqui no quartier e —
nota — os adversários fingem levar a sério essa legenda de “imoralismo” da
doutrina.
— Outro dia, uns rapazes
de Lyon resolveram formar um círculo para estudar e debater o existencialismo.
Recebi uma carta de um deles. Conta que foi procurado por umas pequenas que
queriam saber quando é que iam começar as sessões de jazz…
— É verdade que está
escrevendo um Tratado de Moral?
Sim, tem um monte de
notas para esse Tratado, mas só aparecerá dentro de alguns anos. É um trabalho
imenso; e ele, no momento, além daquele longo estudo sobre Genet, acaba um
romance do ciclo Les Chemins de la liberté e uma nova peça de teatro. O
Tratado — calcula — deverá dar umas seiscentas páginas… Olho, sem querer,
aquelas folhas que estão sobre a mesa, e que ele enchia com sua letra clara e
harmoniosa, e (pobre escritor de coisinhas) não posso deixar de ter admiração
por esse trabalhador que fala com tranquilidade de alguns milhares dessas
folhas que pretende encher. Pergunto se Genet ainda continua ladrão.
— Ah, não, ele se
aburguesa… Agora está com mania de Mallarmé, parece querer imitá-lo.
Confessou-me que quando era malandro e ladrão profissional sua vida era um
desespero; agora é um aborrecimento.
— Mas não rouba mais
nada, nem para se lembrar daquele tempo?
Sartre ri:
— Bem, ele agora tenta
lograr os editores. Vende o mesmo livro a duas casas diferentes, promete a uma
terceira, saca adiantadamente…
E começa a contar
surpreendentes coisas sobre os amores de Genet. Fala sem maldade, com a ternura
viril de um pai falando de um filho traquinas; fica de pé, ri, fuma um de meus
Gauloises.
— Outro dia vi Genet em
Cannes. Ele mora com a família de um amigo pescador, e gosta de passear com as
crianças. Foi apresentado a várias estrelas de cinema e teatro no Cariton e fez
questão absoluta de que todas elas pegassem ao colo um dos meninos. Valia a
pena ver a cara daquela gente esnobe.
Volta a conversar e
combinar coisas com Roberto Assumpção. Devemos ir embora, mas, a essa altura,
sinto que já posso abrir o jogo. Confesso-lhe que além de minhas altas funções
diplomáticas (Roberto me apresentou como se fosse alguém da embaixada) escrevo
alguma coisa sobre literatura francesa para o Brasil. Sei que ele não gosta de
dar entrevistas, mas se pudesse…
— Procure-me quando
quiser!
Não deixarei de fazê-lo.
Correio da Manhã
20 de novembro de 1950
Fonte: R7, O Estado de São Paulo, Revista CULT
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