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Ricardo Labuto Gondim Foto: Internet |
Se eu fosse um
puro-audiófilo – alguém que vive para ouvir gravações que revelam as belezas do
sistema de áudio, não as belezas da música – estaria feliz com a passagem dos
anos, que acena com prodigiosas promessas. Creio que a tecnologia digital
produzirá sistemas espetaculares, de grande musicalidade e baixo custo. Mesmo
que as virtudes de tais produtos residam na emulação dos melhores sistemas de
hoje – e também de amanhã.
Felizmente ou
infelizmente, quem sabe?, não troco uma interpretação espetacular de som ruim
por um registro ruim de som espetacular. Não mesmo. Tenho dezenas de versões da
Heróica, mas nenhuma que supere Toscanini com NBC, 1939. Ainda que a arqueologia
melômana tenha tecnologia para exumar a gravação, remover o Egito impregnado ao
registro e ressuscitar o maestro, por toda a eternidade estaremos ouvindo uma
captação do final dos anos de 1930.
Assim, gostaria
de fazer uma lista de extraordinárias interpretações de obras célebres... com som
“datado” ou meramente ruim. Em arte é preciso ser radical: se a idéia é épate le bourgeois vamos épate todo mundo.
Começando pelo
arauto de Deus, Johann Sebastian Bach, gostaria de recordar as gravações históricas do
organista Albert Schweitzer, doutor em teologia, filosofia e medicina, pastor
luterano, especialista na construção de órgãos, Prêmio Nobel da Paz de 1952, biógrafo
e maior intérprete de Bach em seu tempo. O Dr. Schweitzer celebra a
monumentalidade da Tocata e Fuga em ré menor pela seleção dos registros do
órgão, não pelo uso anacrônico do grande instrumento romântico – que pertence à
Widor e César Franck, não à Bach. Com uma vida que exalta o gênero humano, Schweitzer
nos reconcilia com o espírito fundamental da obra em detrimento de um espetáculo
em Cinemascope. Algo muito mais íntimo, profundo e único – sem deixar de ser
grandioso, mesmo com som da década de 1930.
Se você nunca
ouviu Toscanini, nunca ouviu as sinfonias de Beethoven. A afirmativa pode ser radical
mas é verdadeira. Extraindo da orquestra um som estupendo e uma clareza
extraordinária, Toscanini é a fonte das gravações mais impactantes que você conhece.
Carlos Kleiber e Karajan praticamente se afogaram de tanto beber do ciclo de
1939, mais furioso e veloz que o de 1949/52. Os empolgantes IV movimento da V
Sinfonia com os dois grandes regentes devem tudo a Toscanini, referência
absoluta. Se você está começando a ouvir os clássicos, saiba que Toscanini é autor
da frase mais copiada e mais importante da história da regência: “escutem uns
aos outros”, dizia ele aos membros da orquestra.
Como nossas
elites não estão a altura do país, a nova geração de melômanos não conhece a
brasileira Guiomar Novaes. Madame Novaes dizia que Beethoven escreveu o Concerto
n. 4 para ela. Talvez você concorde ouvindo o registro com Klemperer e
Sinfônica de Viena, com quem a intérprete gravou ainda o Chopin n. 2... e um concerto
de Schumann onde piano e clarineta fazem amor em pleno palco. Embora não seja
bom, o som Vox da década de 1950 não chega a ser ruim. Se você condescender em
experimentar, vai querer ouvir tudo que a grande dama gravou. Como Arthur Rubinstein,
Guiomar Novaes era senhora de tudo que tocava.
As tensões da
Sinfonia n°. 1 de Brahms nunca foram tão sublimadas quanto na gravação de uma transmissão
ao vivo de 1969, com Karl Böhm exigindo fogo e tempestade da Orquestra
Sinfônica da Rádio Bávara. Aqui tudo emerge para a brutalidade, mesmo os detalhes
sutis. A violência que Böhm descobre na obra é desconcertante, e obviamente tem
relação com a própria gênese da Sinfonia. Um doloroso parto a fórceps que atormentou
Brahms ao longo de 20 anos de composição. Esse arrebatamento visceral contribuiu
para derrubar os engenheiros da gravação lançada em CD pela ORFEO. Além de
produzir um registro sem brilho, os rapazes não puderam deter distorções aqui e
ali.
Outra gravação
impetuosa e surpreendente de Brahms é a IV Sinfonia em versão mono de 1954 com
Eugen Jochum e Filarmônica de Berlim. Pessoalmente acho que Jochum é um dos
regentes mais injustiçados e subestimados pela crítica. A prova é o silencioso
acolhimento dessa gravação preciosa, que se alterna continuamente – compasso
após compasso – entre a paixão, a melancolia e o arrebatamento, consumados no tour de force incendiário do IV
movimento. Lindo do princípio ao fim. O álbum da coleção The Originals é duplo, e traz versões muito bonitas das demais
sinfonias – mas que não chegam a alcançar o mesmo fulgor.
Você já deve
ter ouvido falar em maestros que pareciam estar “compondo ao invés de reger”. Florestas
inteiras foram cortadas para imprimir tal frase, atribuída sem muito critério a
uma multidão de cavalheiros de fraque. Somente experimentei essa impressão com um
nome pouco conhecido, Nikolay Golovanov. Superado o impacto do som miserável, inexplicavelmente
ruim para os anos de 1950, ouvir a Sinfonia Patética, a Abertura 1812 ou a
Sinfonia n. 2 de Rachmaninov com Golovanov pode vir a ser uma das experiências musicais
mais renovadoras que você já teve. A Patética e a Sinfonia n. 2 são uma alta
exibição de rubatos alarmantes e
bruscos, dinâmica abissal e a ostentação do vigor atlético, marcial e
stalinista dos naipes de uma orquestra russa. A 1812 não dá bola para a artilharia pesada dos canhões, mas para a
infantaria: a estrela dessa versão única é a “caixa clara”, elevada à condição
de solista.
O Pássaro de
Fogo me assombra desde garoto e seus efeitos não parecem abrandar com uma
maturidade avançada. Tenho dezenas de versões do balé completo e das diferentes
suítes de Stravinsky, todas multicoloridas e nem sempre distintas entre si.
Uma, entretanto, ocupa um lugar especial entre meus sonhos e pesadelos: a suíte
gravada por Ernest Ansermet com a Filarmônica de Londres em 1946. Ansermet
conduz a orquestra e o ouvinte em direção a uma experiência verdadeiramente pictórica:
sombria, saturada de pinceladas ríspidas, precipitadas e escuras – mas ao mesmo
tempo luminosa em sua exposição de detalhes. Entusiastas afirmam que para 1946
o som é “estupendo”. Não creia, já ouvi coisa mais antiga e melhor.
Nessa compilação
limitada pela falta de espaço e pelo meu gosto restrito, omissões injustas são
inevitáveis. Mas teria sido trágico esquecer de recomendar Václav Talich
regendo as Danças Eslavas de Dvorak com sua apaixonada orquestra, a Filarmônica
Tcheca. Talich foi um dos gigantes da regência e deixou um legado de
interpretações fantásticas. Os espíritos penetrantes – que costumam desdenhar
obras menos ambiciosas e de profundo caráter melódico como as Danças Eslavas – deveriam
ouvir esta interpretação arrebatadora, emocionante, plena de vitalidade e
humanidade. Uma celebração da própria vida. Esse documento imperecível tem som
de 1950 registrado pela Supraphon, que disputava com a soviética Melodyia o
título de quem gravava pior – às vezes, com insuperável vantagem.
Nenhum regente
jamais esgotou uma sinfonia de Mahler, embora Tennstedt tenha se aproximado estupendamente
de tal proeza com sua incrível leitura da VI. Contudo, para produzir o milagre,
além de contar com uma notável tomada de som o maestro optou por andamentos
quase estáticos nos trechos de estrutura harmônica mais complexa. Recusando
este artifício válido, Jascha Horenstein – a frente da Nova Philharmonia – produziu
uma das versões mais hipnóticas da VII Sinfonia, a sinfonia da noite. Digo isso
a despeito da trágica perda de afinação da primeira nota do solo inicial. Escrito
para tuba de Bayreuth, na falta desse instrumento peculiar o solo costuma ser tocado
por bombardino (um instrumento maravilhoso desprezado pelas multidões) ou pela trompa.
Como você mesmo poderá constatar, a trompa é um instrumento miserável para se manter
afinado. Os andamentos de Horenstein são precisos e fluentes, brotando com
naturalidade da própria pulsão interior da música – sem fazer concessões à
extraordinária clareza de detalhes. Aquela longa frase de caráter assumidamente
oriental no final do primeiro andamento, por exemplo, nunca foi tão bem
articulada – e jamais soou tão linda, sem rubatos ou efeitos especiais. Infelizmente,
para uma transmissão ao vivo de 1969 o som é vergonhosamente opaco, mesmo na
edição da BBC Legends.
Por razões que
somente ele conhece – e que a mim pouco interessam –, Norman Lebrecht
classificou a frase inicial da IV de Mahler por Mengelberg e Concertgebouw como
“atabalhoada”. Como Lebrecht é muito citado pela congregação dos incautos e
blefadores, convém repetir que – pra variar – ele não sabe o que está falando. Primeiro,
Mahler e Willem Mengelberg eram amigos pessoais. Segundo, Mengelberg foi o primeiro
regente da Concertgebouw de Amsterdã. Terceiro, ele se manteve à frente da
orquestra por 50 anos, estabelecendo o padrão de excelência e a tradição que
perdura até hoje. Quarto – e muita atenção aqui, por favor – a respeito do
andamento das flautas na introdução da IV, o próprio Mahler escreveu que “elas
parecem não saber contar até quatro”. Ora, se o Gondim sabe disso Mengelberg
também sabia. E materializou aquilo que o crítico Marc Vignal, autor de um rigoroso
e lamentavelmente curto livro sobre o compositor, define como “uma espécie de
falso início em si menor”. Ainda que dado a maneirismos peculiares e alguns exageros
próprios de seu tempo, o genial Mengelberg e sua orquestra nos conduzem pela
mão e com muita leveza através de “visões do paraíso pelos olhos de uma
criança” – a intenção subjetiva de Mahler. Este é um dos grandes momentos da
história do disco.
Ainda há muito
território a percorrer, mas devo me
deter aqui. Por falar em Mengelberg, o maestro tinha apenas 27 anos quando recebeu
a dedicatória de “Uma Vida de Herói”, composta por Richard Strauss em 1898. Por
méritos como vigor, pulso e clareza, sua gravação de 1941 com Concertgebouw é
considerada a referência absoluta da obra. Pessoalmente, creio que a versão de
Monteux com Sinfônica de São Francisco (que consta do catálogo da Pierre
Monteux Edition, mas não da discografia oficial da orquestra) tem as mesmas
qualidades. Mas se tivesse que escolher apenas uma para levar àquela ilha
deserta cercada de enquetes por todos os lados, escolheria Monteux. O motivo?
Não sei dizer. Ambas formam a imagem ampla e profunda da obra. Mas por razões
que não posso precisar ou definir – puramente pessoais, sem nenhum critério
objetivo para justificá-las – prefiro Monteux. Tais juízos difusos são os mesmos
que me fazem escolher certas gravações datadas ou meramente ruins em detrimento
de outras, em Cinemascope. Se eu quisesse ser racional em minha escolha deveria
eleger Mengelberg, que ganhou a dedicatória e gravou a música com a
Concertgebouw pela lendária Telefunken. O registro foi restaurado e lançado em CD
pela TELDEC imaculadamente purificado de fungos, poeira e estalidos. Já a
gravação de Monteux não teve a mesma sorte, tem distorções e ruídos.
Quem se
importa?
Por Ricardo Labuto Gondim
Teólogo, professor, roteirista, ensaísta, crítico de cinema e música. Nasceu no Rio de Janeiro em 1966. É autor de “Deus no Labirinto” (Editora Baluarte), volume de nove contos e dois ensaios com prefácio de Washington Olivetto (Fan Page em http://www.facebook.com/DeusNoLabirinto).
Ótimo texto, porém o Mestre Labuto neste caso se excedeu.
ResponderExcluirEle utilizou um assunto completamente batido (audio x tecnologia x qualidade) para exibir seu profundo conhecimento em música...
Em números ele escreve 3 parágrafos introdutórios sobre áudio, incrivelmente 10 parágrafos sobre história da música (inclusive detalhes sobre os regentes, vida pessoal e etc) com meras inserções sobre meia duzia de gravações ruins, depois MEIO PARAGRAFO sobre áudio novamente, e na verdade nem é sobre áudio, mas sobre as escolhas do maestro...
Isso na internet tem nome "TagJacking", ele usa um assunto como subterfúgio para discorrer sobre outros.
Ele não cita, em momento algum, um exemplo de gravação boa e má interpretação.
Ele discorre sim sobre os tempos, os efeitos que são perceptíveis, mas também da bebedeira dos personagens.
Esse é um exemplo horrível do elitismo cultural onipresente no mundo da música clássica. O cara usar um assunto batido em TODOS os ramos da música para discorrer um conhecimento acima da média. Inclusive sobre a vida pessoal dos protagonistas...
Mestre Ricardo Labuto, você sabe muito e todo mundo sabe disso. Não precisava sequestrar um tópico para mostrar isso para todo mundo.